Outra parte de mim


Buscando as ausências de mim

por Solange Perpin


Os escritos da memória me habitam desde sempre. Cresci sem HD monumental, ou melhor, com poucas recordações do passado. Não sei a razão do esquecimento, sei que, possivelmente, por isso tenha me acostumado a guardar coisas e colecionar momentos registrando os acontecimentos em diários, as emoções em poesia, as observações em crônicas, as ilusões em contos, os objetos em caixas, os sentimentos em cristaleiras, os vestidos em baús e tal.



A verdade é que temo me esquecer. Sempre tive uma sensação de estranhamento-medroso, quando rotineiramente alguém chegava me dizia o que fiz ou disse e no vão da memória não havia eco. Só mudez.

Quantas vezes olhei, para dentro de mim outrora, e vi apenas vultos? Restavam apenas fumaças dos dias, ou nem isso. A escuridão se apossava do tempo que se foi e eu precisava olhar para fora de mim, perguntar às testemunhas da minha história e para o interior das estantes para recolher os pedaços de mim.


Talvez, a minha mente não seja capacitada o suficiente para processar tanta intensidade e entrega que eu aposto no presente. Talvez, meu cérebro não seja competente para dar conta da memória recente, pois crio tão avidamente e me lanço em inúmeras atividades simultâneas, que não deve ser fácil convertê-las em antigas. Talvez, o lóbulo pré-frontal, o hipocampo, e sei lá mais onde, sejam relapsos para ordenar internamente os acontecimentos pelos padrões, data, hora e local (o que me obriga a ser muito organizada com as coisas de fora). Talvez, porque eu seja embriagada de sensibilidade diária. Talvez, as conexões entre as células cerebrais, as proteínas, os astrócitos, as glias, os neurotransmissores, as substâncias químicas e outros entes microscópicos estejam tão desconectados que meu gravador cerebral esteja meio bichado. Sempre o foi.


Admiro aqueles que se recordam de inúmeras passagens da vida, dos livros, dos filmes, das conversas, das viagens, das aulas, que poderiam formar uma enciclopédia, um mapa mundi, um compêndio sobre o universo, e um tanto de horas de conversas autobiográficas. Eu não. Sou daquelas pessoas que repetem quase sempre as mesmas histórias, de forma incompleta e um tanto inventada, eu acho. Além disso, dou voltas e mais voltas construindo um labirinto de fragmentos que até eu mesma me perco nas narrativas de mim.

Foi nessa fragilidade da memória que a escrita encontrou um lugar fecundo. Lendo meus textos percebi que são temas recorrentes o esquecimento, as lembranças, o envelhecer do tempo, o passado, a saudade, a nostalgia e mesmo a melancolia. Sem dúvida, a memória muito me interessa desde jovem. E a escrita também.


Numa linha seletiva do tempo, com recortes bem pontuais sobre minha relação com a escrita, guardo duas fotos emblemáticas dos meus cinco anos: numa estou “lendo” um livro capa dura, na outra uma máquina de datilografia me diverte. Alfabetização bem-sucedida com a tia Sebastiana, e ainda guardo bem a feição das professoras de língua portuguesa. Aos 10 anos, comecei a escrever diário. Aos 13 anos, passei a escrever poesia e a colar na porta do meu guarda-roupa, breves citações de pensadores que me revelavam a sabedoria da vida, que eu não queria esquecer. Aos 15, presenteava amigos com meus grafites surreais adornados de versos ingênuos. Aos 18, fiz uma promessa de futuro para não me permitir ser infeliz, custasse o que fosse. Passei os tempos de faculdade, trabalhando, desenhando e poetizando. Em tempos cinza, aos 28, lembrei da promessa e renovei meus votos de felicidade: transitei de profissão, do direito ao jornalismo. Mudei o teor das palavras. Aos 32, criei (com amigos) o evento Conversa Com Verso para declamar poesia na rua, levar arte aos bares, cantar e celebrar a vida com a emoção que sempre me transbordou por dentro. Aos 38, reencontrei um lugar que existia em mim desde criança e eu não recordava: ser professora. Na mesma época, fundei o Ato Com Texto, um ateliê de autoconhecimento, de escrita expressiva e criatividade. Novos atos. As palavras agora vinham para motivar, compartilhar experiências existenciais e subjetivas. Escritas terapêuticas. Por volta dos 47, a vida se desenhou para dentro. Momento de ouvir os afetos mais íntimos, cuidar das relações mais importantes. Foi daí que nasceram meus silêncios e as escritas secretas rasgando, com a ponta afiada do lápis, as dores profundas; impublicáveis. Dois anos depois, troquei de nome para simbolicamente assumir, aos 50 anos, minhas porções mais secretas, o feitiço que encanta o meu viver. Surgia a alquimia de memória com escrita. Eu construía minha melhor versão. Eu me revelava a mim mesma, navegando por minha história de vida inteira, com o projeto on-line escritos da memória que agora lhe entrego com toda minha sensibilidade e afeto. Aprendi o meu próprio tamanho, onde me cabe e por onde não devo estar.


A trilha nem sempre é fácil, nem sempre é clara, muito menos é rápida. São dias de autotransporte pelos ciclos da vida e pelos infinitos episódios vividos, contados, semi-esquecidos da infância, adolescência, juventude, adultice e vellhice. Teremos várias temporadas para desenhar minimamente cada percurso e compreender a vida para gerar novos acontecimentos e memórias boas de serem lembradas.

Tive inspirações vindas de seres humanos incríveis para criar a metodologia de terapia "Teceduras: Escritos e Narrativas do Ser". Li, interpretei, intui, experimentei, pertenci, qualifiquei, renasci. É com a minha aprendizagem que convido você a percorrer os trilhos das suas reminiscências. 



Vamos juntxs? 


Ah, quer me conhecer um pouquinho mais? Clique aqui para ver UMA PARTE DE MIM



Cantiga para não morrer

(por Ferreira Gullar)

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.


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